Esta é uma disciplina bíblica, isto é, uma disciplina dedicada ao estudo dos primeiros capítulos da Bíblia e de alguns métodos que consideramos apropriados para sua análise. E estudar a Bíblia não é, necessariamente, um modo de conhecer Deus. Entenda o leitor que, respeitando os limites do discurso científico, não há como lidar com as possíveis relações que aproximam o Deus bíblico de um Deus
real, transcendente, cuja crença na existência depende, essencialmente, da fé de cada indivíduo. Só está ao nosso alcance, nestas páginas, o Deus personagem, um sujeito ficcional que está inscrito no papel, que foi representado por signos verbais e suas possibilidades limitadas. Um Deus que vive dentro dos limites da imaginação dos produtores e usuários da Bíblia (incluindo autores, redatores, copistas, revisores, editores, tradutores, leitores etc.). Se quiseres saber se algum traço do personagem Deus, identificado por meio da análise literária dos textos bíblicos, corresponde ou não a algo de uma divindade extratextual, essa é uma questão para a qual não teremos respostas (ou melhor: não teremos respostas aceitáveis de um ponto de vista acadêmico).
A partir de Feuerbach, o Deus, que na tradição bíblica cria o homem, pôde ser visto como uma criação do homem, uma representação do homem, quase sempre inspirada no macho, no branco, no judeu, no chefe de uma família, no líder de uma tribo, no general de um exército, no rei de uma nação. Mas Deus não se
resume a isso, a uma simples representação verbal do ser-humano; ele é divino mais que humano e é adorado exatamente porque excede o homem, porque não é limitado por nenhum daqueles predicados redutores que todos conhecemos, tais como a mortalidade, a ignorância, a fraqueza e a materialidade.
Tratar de um personagem como o Deus bíblico é um desafio. Já dissemos que os
textos bíblicos são compostos pela justaposição de outros textos e tradições orais que
existiam anteriormente, unidades textuais que foram editadas por redatores até que
vieram a existir os textos bíblicos que a cultura consagrou, a religião canonizou e o
tempo preservou. Isso, por si só, torna difícil a caracterização de um personagem.
Para alguns desses personagens (os mais importantes) há tantas faces, tantos retra-
tos, que algumas vezes a sensação de incoerência narrativa dificulta qualquer análise.